Somos anfíbios
sobrevivemos igualmente na casa e na rua
respiramos na casa e respiramos na rua
entramos em casa com os pulmões cheios de ar da rua
e devolvemos depois à rua um punhado do ar da casa
em casa trocamos de pele para sair à rua
levamos coisas como quem parte em um excursão
adendos, próteses, maquiagens, enfeites
saíamos para a casa para fora da rua, dobramos as ruas
para dentro de casa - o lado de fora do lado de fora -
e não nos cega a luz súbita da rua, nossos olhos
se adaptam, somos anfíbios,
atravessamos sempre a rua como que foge de casa
no entanto saímos de casa como se fosse seguro
que a ela voltássemos
e voltamos, quase sempre, cheios de fuligem e árvores
e arranha-céus e medo
carregamos o tijolo das paisagens dormimos
sobre o cimento dos anos
entramos em casa como num lago quieto e fundo
saímos à rua como se entrássemos num rio
que sempre muda, transitamos por ambos os meios
ambas as vidas, acreditamos encontrar a casa em casa
e a rua na rua, como se entre a casa e a rua houvesse
uma língua comum, ou como se fôssemos bilíngues,
levamos à rua palavras da casa
Ana Martins Marques