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(…) o confronto violento da figura humana com suas alteridades, estejam elas além ou aquém dos modelos ideais, sejam definidas pelo excesso ou pela falta, sejam extáticas ou bestiais. Nesse confronto, o primeiro modelo ideal a ser negado é a semelhança divina. Para Michel Leiris, a negação do rosto que se observa no emprego das máscaras eróticas representa, antes de mais nada, um “face a face com Deus” no qual o homem vivencia uma experiência de horror sagrado tal como ocorre nos estudos de loucura, de embriaguez excessiva ou nas perversões sexuais. Trata-se de uma experiência em que o ser humano rivaliza com Deus, para tomar seu lugar e deixar, de uma vez por todas, de se definir segundo a hierarquia de um modelo divino. Tema batailliano por excelência, que concebe Deus como a “medida do impossível”, a repousar no horizonte de toda a humanidade. Assim, ao pretender que uma mulher vestida com uma perversa máscara de couro possa oferecer ao homem uma visão de Deus, Leiris sugere não só que essa mulher é um deus para quem a vê, mas também, reciprocamente, que a decomposição da figura humana tem, como primeira consequência, a destituição da figura divina. Como propõe Didi-Huberman, “não há decomposição do antropomorfismo tradicional sem decomposição do antropomorfismo divino (aquele do qual o primeiro é o modelo eletivo, aquele que o primeiro toma ficticiamente por modelo)”.

Para Bataille, Deus representa essa interrogação no vazio, esse impossível que fornece a medida única do homem. Por isso, diz ele no final de Madame Edwarda, “ Deus se soubesse seria um porco”, ou seja, se “ Deus soubesse” ele deixaria de ser essa medida inalcançável que repousa no horizonte da humanidade para rebaixar-se ao nível das certezas humanas. Em suma, não há respostas possível para a inquietação dos homens, o que resta é apenas a grande interrogação, a experiência do “não-saber”. Em “Le supplice, o autor retoma essa frase obscura, lamentando que Deus nada saiba, pois “ na queda nem no vazio nada é revelado. por que a revelação do vazio é somente um meio de cair mais profundamente na ausência”. O face a face com Deus é um deparar com a morte.

Toma-se a título de exemplo, o quadro de Magritte, L´invention collective, de 1934. Nele, vê-se a figura perturbadora de uma sereia invertida —— peixe da cintura pra cima, mulher da cintura para baixo —— como se realizasse uma “correção” do motivo mitológico. A imagem retorna nas ilustrações do pintor belga aos Chants de Maldoror de Lautréamont, em dilação de 1948, dando forma a uma das aparições animais do personagem. As sereias invertidas fazem lembrar que as metamorfoses modernas da figura humana —— cujo ponto inaugural parece ter sido proposto por Maldoror —— enfatizam as “formas bifurcadas” dos monstros antigos, mas com o intuito de operar uma atualização dos mitos.

O princípio de substituição anatômica é, como vimos, frequente nas combinatórias surrealistas. (…) Apesar de soluções distintas, verifica-se nessas imagens o mesmo intento de problematizar a anatomia humana através de substituições.

“Uma máscara pode servir para mascarar (ou desmascarar) outra” ——— a afirmação de Ernst parece não só recusar a possibilidade de uma forma fixa para a cabeça, como também reitera a identidade entre rosto e máscara. p176

Que o assassino de Deus não pode ter cabeça —— eis a conclusão que podemos tirar, senão de toda a produção surrealista que deforma o corpo humano, pelo menos de seus exemplos radicais, e portanto mais trágicos da concepção batailliana (..) Mas, entendemos bem, a cabeça sacrificada pelo assassino de Deus é aquela que, respondendo a uma forma ideal do humano, tem seu modelo eletivo no antropomorfismo divino. É para negar essa forma —— secularmente pensada no elemento mítico da semelhança com Deus —- que o homem se cobre de máscaras, dando a seu rosto um aspecto monstruoso, bestial.


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